Reportagem: Marcella Franco
Imagens: José Felipe Batista/Comunicação Butantan e Centro de Memória/Instituto Butantan
Em 1947, dois anos após sua inauguração, o Hospital Vital Brazil (HVB) do Instituto Butantan assumia a vocação que tem até hoje: o atendimento especializado a pacientes acidentados por animais peçonhentos. Em uma organização que se aprimorava cada vez mais na produção de soros antiofídicos, enquanto lançava as bases para a fabricação nacional de vacinas como a BCG, o HVB atuava como uma ponte entre a pesquisa e a saúde.
Hoje, 80 anos depois, essa vocação continua pautando o dia a dia da unidade de saúde: são cerca de 2.500 atendimentos de suspeitas de envenenamento por ano, e um acumulado de 100 mil prontuários desde 1945. O hospital mantém um serviço de pronto-atendimento, além de dez leitos para observação ou internação. Seus profissionais são treinados para detectar qual animal causou o acidente e qual o soro mais adequado para o paciente, seja pela análise dos sintomas ou de fotos do animal. Além disso, prestam apoio para equipes médicas de todo o Brasil, ajudando no diagnóstico e indicação de tratamento.
Como tudo no Instituto Butantan, o HVB surgiu para atender a uma necessidade de saúde pública: um serviço médico dedicado a reconhecer e tratar acidentes causados por animais peçonhentos. Do esforço institucional que resultou na sua criação, passando pela fase em que se dividia entre endocrinologia e envenenamentos, o hospital viveu altos e baixos, mantendo-se como a referência nacional e internacional que é atualmente.

Colaboradora do HVB confere estoque de antivenenos da unidade de saúde (Foto: José Felipe Batista)
Se em 1945 o HVB atendeu 25 pessoas, cinco anos depois a média de atendimentos já havia alcançado 250 casos. Também houve uma ampliação de escopo: a partir de maio de 1951, as consultas médicas passaram a ser oferecidas também para os funcionários do Instituto Butantan e às suas famílias. Com as novas atribuições vieram novas necessidades, e em janeiro de 1954 o hospital fez sua mudança geográfica definitiva: passou a ocupar um prédio construído com esta finalidade específica, sob supervisão e orientação dos engenheiros do instituto – e onde está até hoje.
As prioridades daquele momento eram oferecer medicação o mais rápido possível, já que a precocidade do tratamento é elemento fundamental no envenenamento; sistematizar os cuidados dos pacientes, para que gerassem dados experimentais clínicos; e procurar novas orientações ou novos recursos terapêuticos em casos que permanecessem sem solução diante dos métodos tradicionais.
No primeiro ano de funcionamento no Pavilhão Vital Brazil, o HVB estabeleceu uma parceria com o Hospital Samaritano. Pacientes curados que tivessem indicação de cirurgia plástica após a alta seguiam, sem custos, para o prédio em Higienópolis – uma já renomada unidade de saúde fundada em 1894 por um grupo de imigrantes britânicos, norte-americanos e alemães.

HVB 80 anos: unidade é especializada no tratamento de acidentes por animais peçonhentos (Foto: José Felipe Batista)
Tal conduta se aplicava sobretudo às vítimas de envenenamento botrópico – ou seja, por serpentes do gênero Bothrops, do qual fazem parte as jararacas –, que pode causar reações inflamatórias intensas e danos nas estruturas corporais, como necrose. Neste caso, uma cirurgia é feita para remover o tecido morto e, na sequência, reconstruir a parte afetada, utilizando enxertos de pele e outros tratamentos.
O ano da mudança de endereço, 1954, é também significativo na história do HVB porque marca a chegada do médico Gastão Rosenfeld à sua direção. “O hospital necessita de uma enfermeira, pois têm havido dificuldades irremovíveis de falta de pessoal, durante o período de férias ou quando ocorreram faltas por motivos diversos. Outro elemento indispensável é a verba para pagamento de alimentação dos doentes internados, que na quase totalidade são indigentes”, escreveu Rosenfeld no relatório daquele ano.
Nascido em Budapeste, na Hungria, o novo diretor do HVB migrou para o Brasil com a família quando ainda era bebê, em 1913. Chegou ao Butantan em 1945, a convite de Otto Guilherme Bier, que então dirigia o instituto. Ficou por apenas dois anos até ser transferido para o Instituto Biológico de São Paulo, onde seria um dos descobridores da bradicinina, potente vasodilatador obtido a partir da análise de amostras de veneno das jararacas. Em 1951 voltou ao Butantan, e em 1954 assumiu finalmente a direção do hospital, cargo que exerceria até 1966. Foi de Rosenfeld, por exemplo, a decisão de que o hospital funcionaria para sempre em sistema 24 horas.

Helicóptero parado em heliponto próximo ao Hospital Vital Brazil, no final da década de 1980 (Foto: Centro de Memória/Instituto Butantan)
Se em sua primeira década de operação o Hospital Vital Brazil trabalhava com a média de 500 atendimentos anuais, ao completar 20 anos a unidade deu um salto inédito – a marca de 2.500 pacientes/ano que se consolidou a partir dali acompanha a instituição quase ininterruptamente até os dias de hoje.
Parte do aumento de capacidade de absorção veio da abertura de um heliponto ao lado do hospital, em março de 1960. Após visita de um grupo de oficiais que chegou ao Butantan de helicóptero, descendo em um campo improvisado, aventou-se a ideia da instalação de algo definitivo. Aprovado o projeto pelo então governador Carvalho Pinto, teve início uma obra de acordo com as especificações internacionais.
“Funciona iluminado à noite por jatos de luz verde e vermelha, havendo luzes vermelhas a assinalar os pontos elevados”, afirmou o relatório daquele ano. Não fosse o novo heliponto, seria impossível ao HVB atender aos dois casos graves que se apresentaram logo após sua inauguração – “sem tal socorro rápido teriam, segundo opinião dos que os atenderam, sido fatais”.
Manoel Bezerra Torres, um militar de 18 anos, desembarcou do helicóptero com a pressão baixíssima depois de ser picado por uma Phoneutria fera, popularmente conhecida como aranha-de-bananeira. Na sequência, a equipe atendeu a menina Wanda Maria de Morais, acidentada por uma Crotalus durissus terrificus, nome científico da cascavel. O caso da criança virou notícia de jornal, numa “demonstrativa da dramaticidade do acidente”, como destacou o Relatório Anual do Butantan de 1960.
Em 1974, o hospital bateu um novo recorde – foram atendidos mais de 3.000 pacientes, o que de certa forma antecipou um movimento de expansão que aconteceria pouco depois, no início dos anos 1980, quando o Vital Brazil inaugurou seu serviço de atendimento telefônico. Com a praticidade do contato, profissionais de saúde e populares de todo o país conseguiam orientação dos médicos e enfermeiros, a exemplo do que se repetiria de maneira ainda mais ampla em 2015, quando se tornou possível falar com o HVB também pelo WhatsApp.

Registro atual dos leitos do Hospital Vital Brazil (Foto: José Felipe Batista)
Depois de décadas funcionando sem maiores imprevistos, o Hospital Vital Brazil enfrentou um dos maiores desafios de sua existência: uma crise de desabastecimento de soros que marcaria a história da saúde pública brasileira.
Vindo da década de 1970, quando o número de acidentes anuais com animais peçonhentos girava em torno de 70 mil e o de óbitos ultrapassava os 250, o Brasil dos anos 1980 contava com três laboratórios públicos na produção de soros: o Instituto Butantan, o Instituto Vital Brazil, no Rio de Janeiro, e a mineira Fundação Ezequiel Dias (Funed). Além deles, havia também a empresa privada Syntex do Brasil S.A, uma farmacêutica multinacional responsável por cerca de dois terços do mercado.
Em 1983, a Syntex do Brasil S.A. descontinuou de maneira abrupta sua produção de imunobiológicos. A decisão foi motivada por problemas diversos, mas envolveu sobretudo indícios de que a qualidade da produção não seria adequada, e a falta de viabilidade financeira para ajuste das instalações a novas normas de qualidade. Desta forma, a produção nacional, que já era considerada insuficiente, se tornou calamitosa.
O agravamento da crise se deu quando os estoques governamentais foram consumidos, e a produção insuficiente dos laboratórios públicos – que enfrentavam deficiências em equipamentos, instalações e recursos humanos devido aos cortes orçamentários – não conseguia repor a demanda. No auge do problema, em 1985, uma criança foi picada por uma cobra no Distrito Federal e não havia soro antiofídico para salvá-la. O episódio provocou um escândalo em Brasília.

Recepção atual do Hospital Vital Brazil: cuidado e atenção desde o momento da chegada do paciente (Foto: José Felipe Batista)
Na imprensa, a repercussão vinha com relatos de amputações e óbitos de trabalhadores rurais devido à falta de soro nos postos de saúde. Como reação, o governo federal instituiu o Programa de Autossuficiência Nacional em Imunobiológicos (Pasni). Seu objetivo era direcionar recursos para a modernização e a expansão da capacidade produtiva dos laboratórios oficiais, ou seja, o Butantan, o Vital Brazil e a Funed. Com isso, a produção do Butantan, que era de cerca de 30 mil ampolas/ano em 1984, saltou para cerca de 300 mil ampolas/ano em 1987, equacionando o problema.
Outro desdobramento institucional da crise de abastecimento foi a criação do Programa Nacional de Ofidismo, na antiga Secretaria de Ações Básicas em Saúde do Ministério da Saúde (SNABS/MS). Foi definida uma equipe técnica e designados grupos que trabalhariam para estabelecer os mecanismos técnico-administrativos para o controle de acidentes ofídicos no território nacional. O Instituto Butantan teve participação fundamental para a construção deste Programa, hoje inserido na Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente (SVSA).
A partir de 1986, os acidentes ofídicos passaram a ser de notificação obrigatória no país, e os dados sobre escorpionismo e araneísmo puderam ser coletados de 1989 em diante, com a conversão do Programa Nacional de Ofidismo para Acidentes por Animais Peçonhentos. A importância e a relevância da criação do programa se concretizaram no visível decréscimo do número de óbitos por acidentes com animais peçonhentos, registrados pelo Sistema de Informações de Mortalidade (SIM).

Fachada atual do Hospital Vital Brazil. A unidade de saúde está localizada nas dependências do Instituto Butantan (Foto: José Felipe Batista)
Até 1988, mais de 40 anos depois de sua criação, o Hospital Vital Brazil era o único local na Grande São Paulo ao qual a população poderia recorrer para a administração dos soros. Como parte do programa de descentralização possível com a recuperação dos laboratórios públicos produtores de antivenenos, a Secretaria de Saúde paulista criou outros postos para tratamento, o que agilizou o atendimento dos pacientes. Entraram na lista, por exemplo, o Pronto-Socorro Municipal de Embu, o Hospital das Clínicas de Franco da Rocha, a Santa Casa de Misericórdia de Santa Izabel e o Hospital Luzia Melo de Mogi das Cruzes.
O HVB voltou a se destacar em 1993, quando foi publicado o manual “Acidentes por Animais Peçonhentos – Identificação, Diagnóstico e Tratamento”. Para atualizar as normas na rede básica no estado, diversos profissionais médicos do Vital Brazil, assim como técnicos do Instituto Butantan da área de Zoologia, colaboraram na elaboração do documento.
Em 2001, na virada do século, o Hospital Vital Brazil não registrou nenhum óbito. No ano seguinte, passou a contar com 11 leitos, sendo quatro deles pediátricos. De 2007 a 2010, realizou mais de 10.000 atendimentos. O hospital permanecia, deste modo, uma referência, e só em 2019 chegou a acompanhar 95 casos de pessoas picadas pela aranha marrom. Como havia previsto o Relatório Anual do Butantan de mais de 70 anos antes, o HVB mostrava sua importância no dia a dia, vez após outra, ao longo de quase um século.



